quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Silhueta

SILHUETA

Hoje a noite é bonita
E maior que de dentro de mim.
Meu olhar se acostuma ao negro
E longe vejo a noite deitar a montanha.
Não só silhueta:
Nuanças, uma terra toda debruçada.
Quanto mais foco no alto,
Mais profundamente enxergo,
Olhar no túnel que veste opacas nebulosas.
Sem utilizar os números,
Talvez eu conte nu as estrelas.
Se continuo a olhar no escuro
Será quão claro eu vejo?
E quanto mais vou seguindo,
Mais preciso me reencontrar.

Marcelo Asth

Mão à pata

MÃO À PATA
 
Não matar um leão por dia:
domá-lo sem chicotes,
sem provocação do medo
no arremedo do poder.
 
Encará-lo e ver lindos seus dentes,
sentir seu bafo de fera,
seu sangue de raça
e sua alma de terra.
 
Ver Deus acenando em sua goela -
prova viva do respeito mútuo.
Tocar sua juba deserta, seca, vistosa,
acariciá-lo com mãos de uma árvore dura.
Fazer dos olhos um espelho
e mostrar seu dentro -
que lá há um leão também brincando savanas,
há bestas sonolentas e outras panteras
roendo a carne do seu pensamento vivo.
 
Deitar ao seu lado
dando mão à pata
narinas ao focinho,
reconhecendo,
se apresentando à força
no brilho
ponderável
da presença.
 
Forte selvageria atávica,
virar bicho,
virar sereno,
veneno,
mato,
flor,
trigo.
 
Não matar um leão por dia, nunca.
Amá-lo na rigidez dum rugido.
 
 
Marcelo Asth

Divino Feminino

arte de Luis Tamani -



A primeira porta de saída
Porta de entrada pro desconhecido

De todo ano velho que eu parto
Parto pro novo gerado e gerido

A vida se anuncia de possíveis
Abra seus mil olhos pro que é merecido

Toda mulher guarda um mistério crível
De reproduzir um mundo desmedido

A mulher é verbo e adjetivo
Plural Substantivo feminino

Aja linda ainda que pareça finda
A esperança, que sempre ilumina

Seja menina ou menino
Brota no feminino
O recomeço, o passo, o aço
O laço, o traço que se firmará

Realizando o destino
Brilha no ser divino
Dia após dia, cria, ria,
Fantasia a se renovar 

A Primeira casa
A Primeira asa
Uma mulher

Nananananã
Nananananã
Uma mulher
.


.
Marcelo Asth
Arte de Luis Tamani

Radiou

RADIOU

O mistério é cristalino,
Basta apenas enxergar.
O mistério é cristalino,
Basta apenas enxergar.
Mas pra isso é bom abrir
Não só olhos, mas bem mais.

Radiou uma Paz,
Radiou uma Paz
Pelos olhos do Amanhã,
Pelas bocas lá do Atrás.

Radiou uma Paz,
Radiou, irradiou,
Radiou, radiou
No presente dessa Paz.



Príncipe Orclã

Fogo

FOGO


Bruxuléia a chama no toco,
 O fogo na dança serena.
Queima e crepita a matéria,
Madeira estalando se agita.
Basta um olhar no que queima,
Consome o mal que te espreita,
Chama pra terra o oblíquo,
Sobe a fumaça que eleva.
Leva o viço da seiva,
Lambe a casca da selva.

Enquanto se baila a chama,
O mundo balança em espera.


Príncipe Orclã

Lei

LEI

Amar é lei.
Amarelei.


Cristinna Palhoça

Gás

GÁS

Eu estou triste 
como a música 
do caminhão de gás
Que vai fundo 
Nas entranhas
E em ruelas -
Roendo o dia
No mistério
Auto falante
Lá de trás,
Do outro tempo
Em que despenca
A poesia.

León Bloba

Riacho

RIACHO

Acho que o riacho ri
Na perda entre as pedras,
No canto entre cantos,
No leito em que dorme,
Correndo, escorrendo.

Acho que o riacho ri.
Sim, ri.
Acho que ri de mim,
Mas ri baixo.

Acho que o riacho ri.
É o borbulhar das águas
Que ri das minhas mágoas.

Mal sabe o riacho que nasceu de minhas lágrimas.

Marcelo Asth
(2005)

Espirais

ESPIRAIS

Surdo como o tempo
Nas borbulhas secretas do poente
À espera dos seres que me bebam
Lançando em espiral minhas partículas
Pros ontens, pros aléns,
Pra qualquer esfera estremecida.
E de lá os bumbos dos peitos
Recordarão do meu nome
E farão sentido 
Quando o sereno silencioso
Tudo consumir em mim.

Marcelo Asth

A grande aranha

A GRANDE ARANHA

Imagine uma aranha-gigante -
Mas gigante mesmo! -,
Maior que o Pão-de-Açúcar.
Ela anda pela cidade,
Mas não é como monstro de filme.
Sua passagem gera comoção
E o impacto das patas no solo
Promove estrondos que ecoam
Como trovões distantes
De tardes mansas.

Oito muletas.
As pessoas apenas desviam
E saúdam a aranha e batem palmas...
Ela passa gigante e lenta
Por cima das ruas,
Dos carros,
Da cidade.

Calçadas permanecem plácidas.
Nada se altera.
A grande aranha entra
Na Praia de Botafogo
E parece que segue
Para a Baía de Guanabara.

Marcelo Asth

Gangorra

GANGORRA

De um lado da boca,
Uma parábola ascendente.
Do outro lado, 
outra, descendente.
Uma gangorra desenhada em linhas
Decadentes.

Efervesce espumando 
cólera, 
alegria, 
gozo 
e medo,
Um coração que testa a si mesmo
Subindo e descendo
Os lados da mesma gangorra,
Condescendente.
 
E que transborda,
De repentemente,
Da borda da boca
E dos dentes.

Plínio Xavier

Muda

MUDA




Muda para plantar
Miúda muda surda
Espera cega enraizar
Muda duma árvore
Dura como mármore
Espera paciente
Muda a transformar

Raiz de muda afunda
Busca ar sob o chão
Água lhe toma inunda
Engrossa sobe do chão
Abduzida pelo sol
Presa no solo
 Entre energias
Nutre muda vira árvore vida
Semente muda
Somente muda
Para plantar

Pai Mulato

Percepto

PERCEPTO

Eu não acredito mais em nada:
Eu acredito eu tudo.
Entre indas e vidas,
Rodopiando mole como plasma,
Vendo tudo o que é pulso:
Fractais rosas máscaras tribais
Veado sapo coisa que não é descrita -

Tanta coisa distinta e
tanto tenta a tinta tonta,
Que titilo, cintilo ao senti-lo tinindo.
Mistério se apronta.
Tinha certeza - inda tenho dúvida...
Dádiva da vida - inda tenho dívida...
Abre um buraco e um mundo
Mente multidividida.

Ellós Forbetor

Ouvido Direito

OUVIDO DIREITO

A corda estica:
Pane na ventuinha.
Vou para o estado zunido da onomérica 
feérica pertipotérica histérica mente.
Sente asa de bicho alado dentro da orelha,
Centena de vôos na bateção...
Não sei se tenho ouvido direito -
Nem esquerdo mais -,
Mas tento o centro.
Abre-fecha movimento,
Pressão ou borboleta
Lenta-rápida, 
Como o início do som da cigarra
Indeciso com coragem.
Bulbo abrindo-fechando,
Balbuciando o estouro.
Pica-pau picareta,
Êta! Britadeira tiroteio de borbulha,
Rugido de porta velha -
Tem alguém morando na minha cabeça!
Otorrino pra não chorar...
O ronco-barulho de rede ia e vinha,
corda do barco estica crec-rói.
Pira na ventuinha.

Marcelo Asth

Poda

PODA

 A motoserra erra
Cortando o bem pela raiz?
Erra uma vez, duas, muitas -
E vão quedando galhos.
Quando árvore chora:
É poda!

Marcelo Asth

Segredo

SEGREDO


- Cara, alho dourado no óleo!
(Olho você bolado com tudo refogando...)

•—•

O segredo do feijão moreno
É o louro.


Marcelo Asth

Cura

CURA

Quem pula sem o preparo
É capaz de vomitar
Preparado divino
Faz sapo querer voar

Sansara cururu maracá 
Sara aqui cura acá
coração cura ação
Sapo pula ali e lá
Entre céu entre chão
Sansara roda na mão
Maravilha vi rodar


Ió Landa

Vapor

Vapor



Fui rasgando a seda que revestia o gozo -
Cobra na troca do espesso couro -,
Ardendo carne no oxigênio,
Queimando as bordas de estranhas vestes.

Despelar labirintos das cascas inertes,
A airosa pele antes esquecida.
Não mais andrajos, nem mais adornos...
Talvez a áurea da manta celeste.

Num movimento como o das dormideiras,
Minhas folhas foram tecendo tímidas
Rastros que abriam o delicado ventre
(Pra eu entender que por debaixo tinha
As muitas camadas e espaços entre).

E o poroso tecido que meu corpo abria
Sugou, como por osmose, o meu amor no mundo,
E fez com a luz, como com a clorofila,
Em devoção, devoração do Sempre -
Como animal bebendo o leite fresco cósmico,
Num estranho processo natural de cria.

Minha pele deu dois goles no rio, no vapor e na força
E nutriu-se verdadeira de poesia.
Não só meus olhos, que só me conduziam:
todo meu corpo comungando a vida.

Príncipe Orclã